A Verdade É uma Caverna nas Montanhas Negras
- Júlio Moredo
- 11 de jun. de 2021
- 3 min de leitura
Um conto de mitologia e folclore germano-celta que mais parece um denso romance de aventura escrito por um mestre da narração
Conto quase de fadas-maravilhoso do premiado escritor pós-moderno britânico Neil Gaiman, A Verdade É uma Caverna nas Montanhas Negras invoca o saber popular das mitologias medievais célticas e germânicas de sua ilha, a Grã-Bretanha. Em muitos pontos, o enredo, apinhado de aspectos cármicos, de cobiça pelo material e poder, se aproxima e assemelha a outro, muito famoso, deste folclore europeu: Beowulf, já que há também uma caverna, um tesouro, um espírito que os controla e um (anti) herói posto à prova a não tombar por eles.

A trama se desenrola numa riqueza de passagens e acontecimentos, bem como no desenvolver dos dois personagens centrais, o anão e protagonista Johnnie, idealista atormentado por uma briga com um de seus cinco filhos, Flora, que fugou de casa em busca da liberdade citadina e nunca mais voltou, e Calum McInnes, seu companheiro de viagem e guia na viagem que fará no rumo à Ilha das Brumas, local onde toda a Escócia (lugar suposto em que a narrativa decorre) sabe existir, nas suas Montanhas Negras, uma caverna onde todo o ouro do mundo é oferecido ao visitante sem nenhum empecilho ou ameaça aparente.
Determinado e com personalidade de gigante, o pequeno Johnnie largou sua amada esposa, Morag, bela mulher dos vales, para se embrenhar nesta aventura para recuperar a estima de sua família após a briga que causou no desaparecimento de Flora. Sabendo que Callum singrou pelas trilhas da Ilha das Brumas, este o procura e contrata seus préstimos para o conduzir no rumo das riquezas que o farão redentor e benemérito de todo o país, já que usaria todas as riquezas que pudesse carregar da caverna para chamar o misterioso “Rei do oeste” de volta ao trono que ele anos antes abandonou.
É, portanto, uma jornada pessoal para um pai de família ferido, bem como uma oportunidade de se realizar um bem maior mesmo atravessando as lonjuras das Montanhas Negras e sua ameaça velada, onde, dizem os populares da região da Ilha, mora um espírito matreiro que, ao dialogar com quem visita a caverna, prega peças mentais nele, deixa-o sair com a riqueza, mas transforma toda sua mente de modo que ele não mais sinta felicidade, paz, alegria ou satisfação em se estar vivo.
Johnnie, alertado também por McInnes, bem sabe das lendas e maldições ocultas por lá mas deseja e está disposto a tomar a senda desta Verdade de cada um, incrustada em cada parede da gruta, mesmo assim. A viagem decorre durante as páginas do conto anunciando um perigoso e sombrio desfecho, já que o narrador, muito sucinto porém descritivo, nos apresenta Callum como um homem grande, lupino, de aspecto, energia e modos hostis e que tem um passado conflituoso a esconder, já que ele já esteve na caverna e usou todo o ouro para comprar sua mulher, família e posição social, tornando-se uma pessoa rude e ainda mais amarga após o evento.
Após uma tortuosa viagem onde se deparam com as brutalidades e opressões, assim como o temor, da época em que vivem, depois da travessia pelos mares glaciais do Norte e de muitos estranhamentos entre ambos, culminando com um quase assassinato de Johnnie por Callum e seu posterior salvamento por Johnnie numa queda d’água antes da caverna, chega a dupla para o desfecho imprevisível da estória, onde o anão terá de sozinho enfrentar seu espelho-demônio escondido nas entranhas do mundo e sair tendo como paga o seu ouro.
“Por aqui, não há ninguém que ousaria tirá-lo de você, sabendo o que é e de onde vem. Então mande o ouro para o rei além das águas, e ele pagará seus soldados, e os alimentará, e comprará suas armas. Um dia, ele vai voltar. Nesse dia, diga-me que o mal existe, homenzinho.” (Callum McInnes para Johnnie à entrada da caverna, antevendo o futuro)
Um livro rápido e instigante para quem gosta de aventuras, cultura europeia e muito suspense em doses constantes. O texto é muito bem construído e na medida certa entretém o leitor mas também o propõem sempre continuar na viagem junto àquela dupla de inusitados companheiros, um tomado pela ganância e já putrefato pela visita ao covil de sua alma, outro em vias de tomar o mesmo caminho. Uma leitura perfeita para uma tarde fria e gris, onde os arremedos do espírito se confrontam e questionam dentro de nós mesmos.
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