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A última tragédia – Abdulai Sila

  • Foto do escritor: Júlio Moredo
    Júlio Moredo
  • 13 de nov. de 2021
  • 7 min de leitura

Atualizado: 19 de nov. de 2021

Viagem à sofrida Guiné-Bissau e aula de sociologia política anti-colonialista e racista

Obra maior do escritor, engenheiro e pesquisador bissau-guineense Abdulai Sila, A última tragédia é um ode em reprovação ao colonialismo exploratório, voraz e, no caso de uma antiga colônia portuguesa, como era a Guiné-Bissau, tacanha, atrasada, ignorante, parasitária e predatória acima da média.


A trama se passa no pós-guerra, entre os anos 50 e 60 do século XX, em que o mundo atravessava alterações e transformações gigantescas políticas, sociais e econômicas, com destaque para a Guerra Fria, a divisão global entre OTAN e Pacto de Varsóvia e conflitos locais de independência patrocinado por EUA ou URSS, causando um verdadeiro racha na forma de se pensar o planeta, gerando o pós-modernismo, a contracultura, a anti-arte, a revolução hippie e tantos outros movimentos de confronto aos sistemas propostos pelas potências.


Num território ultramarino de um Portugal salazarista, fechado em si mesmo e completamente avesso a ideais estrangeiros, contudo, isso pouco importava e a vida de seus cidadãos, brancos ou negros seguia uma toada distinta do restante da própria África. É neste contexto histórico que o narrador onisciente nos introduz Ndani, a protagonista, uma mocinha ingênua, determinada e sem perspectivas de futuro em sua aldeia natal, Biombo, para a capital da província, Bissau, em busca de uma nova vida material e imaterial, já que era rejeitada não só pelo machismo patente em sua cultura como também por ser considerada uma portadora de azar e mau agouro aos que a circundam, seguindo as crendices espirituais e religiosas de sua etnia.


“Toda a gente acredita numa profecia de um maldito Djambakus que afirmara ser ela portadora de um mau espírito, da alma de um defunto mau, e lhe vaticinara consequentemente uma existência turbulenta, uma vida de desgraça, de tragédias até ao fim... E lembrava-se de que desde aquele dia perdera o sossego em Biombo, que tudo quanto acontecia com ela, mesmo as coisas mais simples —uma queda, um falecimento uma febre passageira , era objecto de muita especulaçãoà volta de sua vida, era quase sempre interpretado como o presságio de uma tragédia que se avizinhava. Mesmo a sua mãe dava ultimamente sinais de acreditar na história, embora pretendesse fazer-lhe crer o contrário.” (p.27)


Por esta razão, e encontrando apoio para aconselhamento apenas em sua quarta madrasta (seu pai tinha quatro esposas), justamente a mais nova dentre elas, parte ela para a praça principal da colônia na tentativa de arranjar emprego na casa de algum comerciante branco que a aloje, vista, alimente e dê guarida como criada de família e ama-seca. É desta forma que a encontramos nas descrições diretas mas profundas de Sila, à beira de um palacete de uma família de portugueses à procura de trabalho utilizando as parcas palavras que conhecida, também pela madrasta, da língua do opressor: “Sinhora quer criado?”.


“No fundo, toda a gente devia ter recebido com alegria a notícia de sua partida. Todos, excepto a madrasta mais nova, talvez a única pessoa na sua tabanca que a encarava e tratava como uma rapariga normal. Os restantes, bem ou mal, arranjavam sempre um pretexto para evitar a sua companhia. À medida que crescia, mais sentia o peso dessa rejeição, mais insuportável se tornava a discriminação. Foi por isso que quando a madrasta lhe falou do outro mundo que havia neste mundo, não hesitou em sair à sua descoberta.”


O modo como a cena primeira se desenrola, com a humilhação pública da faminta e perdida Ndani por Dona Maria Deolinda Leitão, sua futura patroa, já condói o leitor de maneira visceral e nos prepara para os sofrimentos anímicos que a esperam durante sua estada como copeira da casa, já que, graças à intercedência de José Leitão, o marido, carreirista formado em Lisboa e proveniente, como a esposa, do Alentejo.


Ela logra ocupar o posto de empregada doméstica não sem antes sofrer de náuseas após comer a rala sopa que lhe deram após ter sido propositalmente molhada e enxotada por Linda horas antes. É o mote para um leitor já experimentado e, tenho certeza, já cativado por personagens e enredo, para imaginar o quanto das relações raciais serão explorados neste contraste de mundos que viverá a menina.


Seria essa a diferença a que se referia a sua madrasta? Pensava que ela falava de diferença no sentido de maior conforto, de bem-estar, de alegria, de beleza. Ela falara de coisas maravilhosas mas até agora só descobrira crueldade. Mas... seria crueldade mesmo? Ou seria antes desprezo pelo preto? Se tivessem encontrado uma menina branca com fome e sede, tê-la-iam também abandonado? Mas que parvoíce! Rapariga filho de branco a pedir trabalho na rua, isso é impossível (...) (P.29)


Nos parágrafos seguintes se apercebe o leitor de que Maria Daniela (o nome lusitanizado de Ndani, já que Dona Linda o confundiu com um som levemente russo, comunista) é apenas uma adolescente frágil e em busca de um lugar a um raio de sol de seu existir fadado ao ódio pelos seus entes. Tem ela quinze anos após dois passados ao serviço da família que tem, além de Linda, Zé Leitão, o chefe, e os filhos João, estudante de direito em Portugal, e Mariazinha, graduanda em medicina. Os contrastes que Ndani enxerga por lá não param por aí e fazem-nos refletir sobre nossa própria cultura ocidental: Por que poucos filhos? Por que tanta sanha de se saber a idade das pessoas, o dia, a hora, o mês de seu nascimento? E por aí vai.


Sila vai deixando implícito o nível de semi-escravagismo e hipocrisia ao qual as mulheres negras criadas de famílias europeias vão passando ao longo de sua convivência com as patroas. Todas elas batizam-nas com nomes lusitanos, todos eles começados com “Maria” (mulher) antes do segundo nome, todas exigem catecismo, cabelos lisos, rosários, crucifixos e missas diárias ou semanais delas, que vão aos poucos esquecendo seus deuses, raízes, culturas ancestrais de produção alimentícia ou de divertimento tribal, tudo a troco de viverem com o maior conforto que a esmola da labuta as proporciona. Ndani, inclusive, é a segunda melhor aluna do capelão, atrás de Maria Clara, criada de outra moça da alta sociedade a quem Dona Linda deseja muito suplantar através de sua empregada e pupila. Tudo é antropológico, todos são objetos de experimentos sociais e econômicos nas mãos dos colonizadores.


Sem leitor estar preparado ou qualquer aviso, há uma mudança brusca na narrativa, tanto de cenário como de personagens centrais: a trama muda-se de Bissau para Quinhamel, vila do norte guineense, passando a retratar os desentendimentos do Régulo local, Bsum Nanki, com o administrador colonial, alguém que o insultou e pouco fez de sua importância política para os indígenas da zona. Buscando vingança, ele costura alianças com Barbosa, um português já aclimatado aos costumes, gostos e hábitos dos negros, para conseguir apoio político para uma revanche no covarde Chefe, o representante da metrópole lusitana.


Desta forma, após muitas páginas de esforço e esperança de que a trama se volte à Ndani-Daniela ou ao menos com ela se entrelace, o leitor é premiado pelo narrador com este encadeamento faltante (com muita prosa de atraso, é bom que seja dito), já que o Régulo conhece Maria Deolinda e ouve falar de sua criada de Biombo, virgem, prendada, educada à europeia e muito estudada na fé cristã, que se espalha por Quinhamel por intermédio de uma escola em que Bsum, Deolinda e Barbosa logram erguer e inaugurar com toda a pompa e circunstância no lugarejo. É aí que o poderoso líder da localidade decide colocar Ndani como sua sexta e mais jovem esposa.


A intenção, por óbvio, é demonstrar mais uma vez a contrastante visão de mundo de brancos e negros e seus choques, sejam eles pacíficos ou belicosos, já que o Régulo é dos mais complexos personagens do enredo, refletindo as diferenças dos pensares africanos e ocidentais na questão da manipulação, jogo político e coesão étnica e racial. Ele, por isso, vê o contexto em que se insere sua vila como uma oportunidade para mudar a mentalidade dos oprimidos em relação aos opressores, ensinando-os a pensar em conjunto, entendendo as fraquezas e fortalezas de seus opressores e dominadores, os brancos.


“Isso de luta entre raças sempre foi assim, é como luta de cachorros: agora um está embaixo, o outro em cima; depois o que estava embaixo vai para cima e o outro para baixo. O branco veio, tem que ir um dia. Ainda há de aparecer um preto com coragem para pensar nisso. Um preto que vai descobrir todos os pontos fracos e pontos fortes do branco para depois combate-lo. Alguém já disse que quando uma pessoa consegue descobrir as fraquezas do inimigo pode vencer, mesmo se for mais fraco. O branco tem que ir, mesmo que alguém tenha que os pôr no lampram (atira-pedras) um a um. Depois disso, tem que acabar com polícia, com guardas, com cipaios, tudo isso. O professor e a sua escola é que vai ter força. Até porque devia então sair uma lei: toda a gente tem que pensar. (...) (Reflexão do narrador sobre os pensamentos de Bsum)


Para este instrumento de revolução social ficar completo, vai então o Régulo de Quinhamel utilizar-se do patriotismo português de Dona Deolinda contra ela própria, a começar por arrebatar-lhe a valiosa criada como esposa, a própria Ndani, que, junto a ele e ao sofrido Professor local, alguém que perdeu seu pai por uma injustiça jurídica colonialista, irão instigar uma nova forma de se pensar o chão, os costumes e a coletividade bissau-guineense a fim de promover uma futura independência, sem esquecer porém da grande quantidade de maus presságios existentes no destino da protagonista, combatendo-os ao descobrirem o amor nas palavras cristãs, tão mal interpretadas pelos brancos e usadas de modo errático pelos negros e suas crendices.


O combate às injustiças raciais torna o romance cada vez mais envolvente daí para o seu desfecho terrificante, onde a paz que um homem de bem (o Professor) deseja à sua família é sobreposta pelos maus tratos dos brancos, muitas vezes apoiados por serventes negros e combatidos, paradoxalmente, por alguns brancos corajosos e de valor, o que torna esta experiência literária única para se conhecer uma África igual a todas as Áfricas, mas, acima de tudo, uma África que fala a nossa língua.

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