Circe – Madeline Miller
- Júlio Moredo
- 13 de ago. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 28 de ago. de 2022
Deusa, bruxa, ninfa, amante. Temor até de Zeus, reconforto de Dédalo e Odisseu. A revisita definitiva da personagem mais complexa da Odisseia de Homero

Prato cheio para quem quer se “civilizar” na cultura berço do Ocidente, isto é, a grega, Circe, romance épico/autobiográfico da norte-americana Madeline Miller, é daqueles que se põem inesquecíveis a qualquer leitor minimamente interessado em simbolismos do imaginário popular da antiga Grécia.
A obra, de um cuidado lírico invejável e de diálogo direto com o leitor, trata da caminhada e feitos de Circe, deusa menor do panteão helênico que, como todas as ninfas, existe por uma eternidade tão somente por existir e perdurar, à espera de um casamento com um mortal ou mesmo uma violação por algum herói semideus.
Aos poucos, tão logo a narrativa engrena, se é que já não nos deixa de água na boca desde o início, a trajetória desta pequena divindade nos vai sendo destrinchada pela prosa sedutora de Miller, que tem o dom de dar vida, gestos, alegorias, metáforas e grandes retoques de caráter a todos os personagens do enredo, que não são poucos.
Filha de Hélio, titã solar, com a mimada ninfa aquática Perseis, neta do grande titã Oceano, Circe (cabra em grego antigo) sempre conviveu com o desprezo de seus progenitores e irmãos (os trapaceiros e cruéis gêmeos Perses e Pasifae e, depois, do caçula e falso amigo Aietes). De seus pais ela detém somente comiseração e, na maior parte do tempo, indiferença por ser ela mais feia e pouco carismática em relação aos outros membros dos grandes palácios dos titãs.
Crescendo neste ambiente tóxico e tendo uma bondade curiosa e inerente ao seu ser, Circe vai testemunhando nas dores do cotidiano imortal o quão duro é ser uma deusa pouco querida tanto pelos mortais como por sua família.
O primeiro contato indireto que ela tem com os humanos, fadados ao eterno sono, é justamente com um de seus tios, Prometeu. É ele quem rouba, por amor às pessoas, o fogo sacro do Olimpo e, de vontade própria, entrega seu crime e traição a Zeus para ser eternamente castigado. Deste idealista titã tem Circe a primeira grande lição de sua vida: ser o que se é agindo como lhe parecer correto, mas arcando igualmente com as consequências de bom grado.
“Nós, deuses, comemos tal como dormimos: porque é um dos grandes prazeres da vida, não porque precisamos. Podemos decidir um dia não obedecer ao nosso estômago, se formos fortes o bastante. Eu não duvidava que Prometeu fosse. Depois de todas aquelas horas aos pés de meu pai, eu tinha aprendido a farejar o poder. Alguns dos meus tios tinham menos cheiro do que as cadeiras em que sentavam, mas meu avô Oceano tinha um aroma profundo como a lama fértil de um rio, e meu pai a chama abrasadora de um fogo recém-atiçado. O perfume de musgo verde de Prometeu preenchia o salão. (Cap. 3, pág. 23)
Aquele amor oculto pelos mortais só vai aumentando quando a ninfa se vê abandonada por todos. Seus irmãos mais velhos partem. Uma casada com Minos, rei de Creta, outro fugido para a Pérsia, a fim de estudar feitiços. Aietes, aquele que lhe era mais próximo, também se esquece dela e vai em direção a um reino dado por Hélio, reinando e produzindo poder, magia e tirania vaidosa.
Triste, solitária e carente de ardor humano, sem entender a frieza e intrigas pequenas que a imortalidade dava à sua família, viaja então Circe para uma ilha paradisíaca na costa grega para refletir sobre aquela vasta solidão, buraco preenchido de afeto não correspondido.
É precisamente perambulando por essas areias que ela encontra seu primeiro amor e razão de existir: o mortal Glauco. Com ele a menina-deusa vive uma paixão construída aos poucos com aquele humilde e diligente pescador, discorrendo sobre a vida mortal e suas tristezas e delícias, seus grandes feitos do dia a dia daqueles que têm de lutar para sobreviver. Deste convívio surgiu um amor puro da parte dela e, um pouco, também da dele.
Rogando favores a Glauco por intermédio de sua avó, a poderosa titanide Tétis, Circe invoca um juramento de nunca se deitar com ele para, a câmbio, ganhar da mãe de sua mãe as bênçãos de grande fartura de peixes para aquele homem do mar não sofrer castigos de seu pai.
Sofrendo por ter tão perto e paradoxalmente tão distante aquele que mais a amava e compreendia, a deusa acaba se desesperando e cometendo a loucura de tentar usar os Poderes da Terra, as Pharmakas, quer dizer, ervas e seivas de sangue divino caídos em antigas guerras entre titãs e deuses do Olimpo, para transformar Glauco em um pequeno deus aquático. A intenção da ainda ingênua moça é romper o juramento e se unir em imortalidade àquele a quem ela adorava em ansioso desespero.
Conquistando aí o seu primeiro êxito mágico, Circe logra transformar o rapaz em um imortal dos rios. Por ironia, contudo, ele se vê cheio de si e de poder, rejeitando esquecendo sua benfeitora.
Ao escolher a ninfa Cila por esposa, uma deidade supérflua, volúvel e egoísta, a protagonista se sente traída mais uma vez por seu simples desejo de amar e ser amada, exceção nobre e única entre aquela família de deuses. Desesperada e ainda ignorante de seus poderes, Circe prepara seivas, poções e misturas amaldiçoadas para transformar Cila num terrível monstro marinho de seis cabeças que viria a ser a Hidra, habitante de cavernas nas costas do mar Egeu.
A ação não surte efeito e apenas dá mais repulsa em Glauco. Sem quaisquer motivações ou alegrias, a pobre ninfa se entrega, inspirada em Prometeu, a seu pai sobre as bruxarias que realizou. Descobertos seus poderes sobre ervas e seivas por seu irmão Aietes, que a vê como uma tola que expôs suas fraquezas e fortalezas ao mundo, Circe é então exilada por Hélio numa ilha chamada Eana, na atual costa italiana. A intenção de seu pai é a de apaziguar Zeus, que vê na sua prole, todos mágicos, uma ameaça à hegemonia dos olimpianos no mundo de preces dos deuses.
“Eu não tinha considerado que minha confissão roubaria de Glauco o seu maior orgulho. Tarde demais, pensei. Tarde demais para todas as coisas que eu devia ter sabido. Eu havia cometido tantos erros que não conseguia encontrar meu caminho de volta através daquele emaranhado até o primeiro deles. Tinha sido transformar Cila? Transformar Glauco? Fazer o juramento para minha avó? Falar com Glauco, para começo de conversa? Eu sentia uma inquietação doentia de que o problema remontava até mais longe, ao meu primeiro respiro.” (Cap. 6, pág. 69)
É a partir desta parte da história que a vida e obra de Circe são colocadas em perspectiva pela própria personagem, deixando ao leitor a doce tarefa de julgá-la em suas falhas e triunfos, todos oriundos de razões bem-intencionadas.
Sem nunca nos dizer abertamente, Madeline nos dá a clara certeza de que a ninfa-bruxa amada e temida pelos mortais era, a despeito de sua pouca beleza e voz impura, a mais especial e forte de sua família de titãs, que só queria, como já dito, amar e ser amada, sem magia, por aqueles a quem nutriu admiração.
Filosófica como toda obra grega, este romance é um caminho para nos vermos como em um espelho nas entranhas da alma atormentada e estoica da protagonista, uma mulher acima de tudo sedenta por sentir, seja dor, seja alegria, de se ser quem é na chã terra dos mortais.
Sem deixar de dar estocadas certeiras e necessárias de feminismo sobre a posição inferior e passiva das ninfas, a autora vai conduzindo-nos por essa aventura pelas ilhas e mitos gregos para que aprendamos a ser como Circe, isto é, a buscar incessantemente nossa essência e júbilo por simplesmente perdurarmos sendo quem somos, buscando nossa felicidade mantendo princípios de gentileza, moral e candura.
É assim que ela vai se transformando na mítica feiticeira de Eana, sedutora e algoz de marinheiros, amada por gênios do porte de Dédalo, concubina de olimpianos como Hermes (esta passagem, inclusive, remonta a carmas do destino tão tipicamente gregos), compreendida por bestas-feras como o Minotauro e até temida por heróis como Jasão e Medeia, sua sobrinha.
“Dédalo não viveu muito mais que o filho. Seus membros se tornaram cinzentos, toda sua força transmutada em fumaça. Eu não tinha direito de reivindica-lo, sabia disso. Mas, em uma vida solitária, há raros momentos em que outra alma mergulha perto da sua, como estrelas roçando a terra uma vez por ano. Ele foi para mim uma dessas constelações.” (Cap. 11, pág 141)
A indefesa ninfa vai assim se descobrindo em cada capítulo, virando a mulher imortal mais humana da mitologia. Miller nos dá, com este livro, o presente de passearmos pela história dos mitos da Grécia pela perspectiva desta encantadora de animais, conjuradora gentil e implacável de seu próprio reino e figura-chave na Odisseia de Homero, incompreendida em seu louco amar pelo completo e astuto Odisseu, aquele a quem mais idolatrou, compreendeu e foi compreendida.
A saga de amor de ambos é um marco revisitado neste romance. O herói ensinando-a as vicissitudes e injustiças dos mortais, ela limpando suas feridas de meio mundo de viagens, dez anos de guerra em Troia e mais um milhão de culpas e atos feios que possibilitaram coisas belas.
Como em uma típica tragédia grega, o pecado maior da pobre Circe, por insistente ingenuidade, foi ter novamente crido que o ardor amante de Odisseu o seguraria para sempre em êxtase pelas praias de Eana, ignorando o inevitável destino que este tinha a cumprir, retornando à sua esposa, a calculista e inteligente Penélope, e ao seu filho, o austero, simples e sofrido Telêmaco. Toda esta família estará, por trágica e dramática sina, ligada à vida da ninfa-bruxa, cada vez mais atrelada à gana de suavizar suas angústias e jubilar-se na mortalidade bela dos humanos.
"Quantas vezes eu teria de aprender? Cada momento de minha paz era uma mentira, pois ela existia ao prazer dos deuses. Não importa o que eu fizesse, quanto tempo vivesse, a seu bel-prazer eles poderiam me alcançar e fazer o que quisessem comigo" (Pág 211, cap. 17)
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