Espelhos – Eduardo Galeano
- Júlio Moredo
- 21 de fev. de 2022
- 3 min de leitura
Corrida prazenteira em leitura e inquietante em reflexões sobre a invenção de se ser um humano forjada e organizada por um dos mais sensíveis de nossa espécie

Tal e qual seu próprio autor, o romântico poeta da prosa Eduardo Galeano, uruguaio notável por sua sensibilidade em narrar a História à maneira dos que a viveram e não se ficaram nela, Espelhos, ensaio em pequenas crônicas sobre a passagem humana pela Terra, nos ensina a enxergar a humanidade e seu desenvolvimento, criação de mitos, lendas, crenças e hábitos como um observador não canônico ou necessariamente cronológico.
Com sua rara habilidade de cronista lúdico, vai então Galeano nos conduzindo pela mão, quase que a falar sobre as cosias da vida à beira de uma fogueira noturna, relatando (de maneira nem sempre cronológica ou geográfica, como dito) os principais feitos que os humanos realizaram através da força emprestada por aqueles que nunca tiveram voz, especialmente os escravos e as mulheres, o que fica claro quando se está nas partes de contos rápid0s sobre o sexo, o prazer, as festanças e pecados originais nas antigas Grécia, Babilônia, Pérsia, China, Egito, Arábia e Roma.
A obra, portanto, é uma deliciosa narrativa de causos e coisas feitas por pessoas poderosas mas chanceladas ou intermediadas por seres sempre vistos, consciente ou inconscientemente, como inferiores, subjugados, menores ou sem relevância social, política e econômica para o desenvolvimento material e intelectual de nossa espécie.
Impagáveis são igualmente os curtos, rápidos e às vezes escassos pitacos do próprio Galeano, honrando o leitor com suas opiniões sobre a construção do mundo que ora vivemos, esbanjando sabedoria, expandindo sapiência e conhecimento do que poderia ter sido, foi, é e será através das escolhas, idiossincrasias e injustiças que movem as rodas da vida. Um privilégio para quem lê cada linha das várias páginas de valiosa e prática ilustração sobre quem somos, já que a construção das mesmas é feita por um mago da palavra que, em alguns casos, humildemente deixa sua própria opinião marcada ao final de uma passagem que quase sempre nos é nova ou pouco conhecida.
“Em nosso tempo, George W. Bush, talvez convencido de que a escrita tinha sido inventada no Texas, lançou com alegre impunidade uma guerra de extermínio contra o Iraque. Houve milhares e milhares de vítimas, e não apenas gente de carne e osso. Muita memória também foi assassinada. (...) (Fundação da escrita, pg.9)
“Essas histórias, por ela escutadas, lidas ou imaginadas, a salvaram da decapitação. As dizia em voz baixa, na penumbra do quarto, sem outra luz que a da lua. Dizendo essas histórias sentia prazer, e dava prazer, mas tomava muito cuidado. Às vezes, em pleno relato, sentia que o rei estava examinando seu pescoço. Se o rei se aborrecesse, estava perdida. Do medo de morrer nasceu a maestria de narrar.” (A mãe dos contadores de história, pg.78)
"Aos dezesseis anos de idade, Avicena tinha aberto seu consultório. Muito depois de sua morte continuava a atender pacientes." (Avicena, página 88)
"Milhares de enforcados e decapitados foram testemunhas do restabelecimento da ordem. A fonte também." (A fonte da fome, sobre o massacre de campesinos medievais em Mainz, página 89)
Assim, tal e qual o seu pai, Galeano, a História do homo sapiens vai sendo narrada de maneira linear, por vezes não canônica e de modo suave, como a correnteza de um lépido porém plácido rio de histórias, estórias, causos, contos, casos e coisas que homens e mulheres invisíveis (daí a alusão espelhada do título) fizeram em contributo, ao bem e ao mal, muitas vezes sem o saber, à nossa vida atual, já que a narrativa de Eduardo vai de encontro até o ano de 2007, aquando da publicação do livro.
Quem já leu As veias abertas da América Latina, o maior clássico ensaístico desse grande e sensível poeta e romancista, certamente irá se deliciar com Espelhos, que é nada menos do que um grande compilado homeopático do grande sucesso do escritor, servindo de guia para nos compreendermos a nós mesmos, colocando dúvidas que remetem, magicamente, à certeza de que somos propulsores mínimos das válvulas do planeta, com responsabilidades naquilo que escolhemos e fazemos como um todo.
Além desse aprendizado maravilhoso e único, resultado de anos e mais anos de pesquisa e edição do uruguaio, ficamos com a cabeça enriquecida de mitos e lendas pouco conhecidos ou ensinados em nossos colégios e academias, muitos deles de culturas exóticas como a polinésia, a chinesa ou a africana, dando-nos maior visão crítica dos horrores das guerras, fomes, pestes e exclusões sociais propositadas na caminhada de nossos ancestrais, sempre oprimindo grupos mais frágeis como mulheres, negros e indígenas.
Um livro fácil de se ler aos poucos e de maneira esparsada, servindo de divertimento sensível e acolhedor até aos mais fracos leitores. Vale cada letra de ensinamento!
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