Mar Morto - Navegue no mar dos mistérios e amores da Bahia
- Júlio Moredo
- 10 de nov. de 2020
- 5 min de leitura
Belíssimo romance dedicado ao mar, à gente que dele vive e, especialmente, à cultura baiana, tão viva no amálgama que a moldou e que o grande Jorge Amado tão bem conheceu. Enriquecendo-a com sua genialidade literária de criar grandes personagens, cada um com brilho próprio e papel decisivo nesta deliciosa narrativa

“É doce morrer no mar”. Eis o mote lírico e paradoxal que nos transporta para a sociedade única dos homens que moram na costa, o baiano Jorge Amado expõe toda a sua simples genialidade na prosa corrida e deliciosa de Mar Morto. Modernista, Amado traz ao leitor um texto rico em neologismos e grande capacidade descritiva dos costumes dos portuários da Bahia, sem pretensão, porém, de inventar uma língua própria e ininteligível.
O romance é contagiante a todos os que amam o mar e a riqueza cultural brasileira. Refletindo também sobre as desigualdades sociais daquela terra já que, muitas vezes, o ofício de barqueiro vem por falta de opção e necessidade imperativa em detrimento da vocação. A beleza pujante desta obra vem justamente daí: A pobreza, o amargor e o abandono destes ribeirinhos contrastam e dialogam a cada capítulo com o belo, o sublime, o lúdico e o poético de se viver pelas águas na esperança de ver a padroeira Iemanjá a realçar os “cabelos” à lua.
A trama conta essencialmente a história de Gumercindo, o protagonista, e sua fé na Rainha do Mar, protetora e venerada por todos os habitantes do cais do porto da mítica Baía de Todos os Santos. Herói clássico, de personalidade forte, apelidado de Guma, o rapaz é destemido, forte e fiel a seus princípios de marinheiro, ensinado que foi por seu velho tio Francisco, velho lobo do oceano. Ele foi salvo das ondas pelo pai de Guma, Frederico, errante marinheiro. Sua mãe, uma desiludida moça da vida, foi abandonada e o deu para criar ao cunhado quando bebê.
Esse enquadramento todo se inicia pelo final, com o narrador onipresente nos mostrando Guma já feito e maduro de regresso das águas em meio à forte tormenta. Lívia, sua eleita, o está esperando aflita na beira do atracadouro. Nesta mesma tarde um de seus colegas falecera no mau tempo e deixou mulher e filho para nascer. O drama é todo retratado de maneira lírica, descrevendo cheiros, melodias e libidos sexuais.
A partir do segundo capítulo é que a história de vida de Guma é introduzida de maneira cronológica para a acompanharmos com o afinco de quem espera uma nova provação de um Ulisses nordestino a cada grande peripécia a bordo do “Valente”, seu saveiro. É a Bahia do início do século XX descrita com detalhes em seus problemas, alegrias e sensualidade tropical, de Salvador ao Recôncavo, perímetro onde as Canoas, saveiros e navios passam carregando gentes, mercadorias, peixes e muitas, muitas estórias, causos e fofocas de cada pedacinho do microcosmo que o escritor tão bem traduziu em palavras e páginas.
Através da veneração que nutre em Mãe d’Água, Guma crê que o destino lhe sorrirá por muitos anos, ajudando-o a encontrar o amor forte e perfeito que cada marítimo busca em vida, galgar grandes feitos de coragem e intrepidez com seu barco e, por fim, viajar e conhecer cada porto do mundo tal e qual fez seu pai assim que o concebeu. Na verdade, o protagonista parece de fato ser o dileto da Rainha, que espera a todos os homens para ser amante deles à deriva no dia derradeiro. Quando apresentado à mãe por seu tio, por exemplo, ele resiste ao reencontro melancólico de maneira inconsciente, preferindo pensar que ela era uma prostituta para que ele “virasse homem”. Daquele dia em diante, traumatizado, nunca mais parou de idealizar uma mulher prometida e adequada para os seus sonhos e aventuras.
Lívia chega a ele para preencher essa lacuna. Ela o conheceu e se enamorou num baile à Iemanjá. Duplamente crente na dádiva dada, o mulato a mirou também apaixonado sem mesmo saber o nome dela. Após um desencontro na festa, Guma soube de seu interesse e ouviu seu nome através de Rodolfo, seu antigo colega de infância, que a cita como sua meia irmã.
Depois de uma aventura dramática no interior, com vida e morte à mistura na briga no bordel local, o marinheiro é salvo de um tiro por Rita, uma jovem meretriz que o ama por poucos momentos de compreensão e ternura, piedoso que estava Guma à situação sem volta que a menina se enredou. Ele volta pelo rio disposto a casar com Lívia e batizar sua filha de Rita, em honra da tragédia que vivenciou. À boleia leva Traíra, seu conhecido, ferido de morte na briga. O rapaz vem a falecer nos braços de Dr. Rodrigo, médico benfeitor dos marítimos, declamando os nomes das três filhas que órfãs ficariam.
Essa era a triste sina dos marítimos, aventureiros por natureza e amantes, acima de tudo, de Iemanjá, loucos por navegar em seus alvos braços. Guma, contudo, só quer saber de propor casamento após tantos desafios à morte (em um deles conquistou imenso renome por guiar, em plena tempestade, o transatlântico Canasvieiras para dentro da baía).
Ele tudo faz para tal, escrevendo uma carta de amor com ajuda do beberrão e pseudo intelectual Filadélfio. O homem vive escrevendo missivas de todo tipo para aquela gente semianalfabeta. Logrando entregar a missiva, Guma convida a donzela a fugir para uma noite de amor em Maragogipe, longe de seus severos tios. Os dois se amam em meio a uma inesperada tormenta. O ato de possuí-la faz os parentes consentirem com a união, que ocorre na igreja de Monte Serrat, templo dos marujos em promontório voltado para as águas.
A festa é descrita lindamente. A lua a surgir junto ao cortejo nupcial se mescla com as rodas de batuque, ao som delas dona Dulce, professora primária da zona, antevê esperançosa um milagre social daquele povo. Tudo culmina com a voz de ninfa de Maria Clara, a concubina de Mestre Manoel, saveieiro mais veloz da zona. Consternada, a noiva Lívia pensa muito no morrer-se nas ondas, ela que é da ‘’terra’’, o enviuvar cedo que poderia ocorrer-lhe. Teme pela vida de seu amado que, cedo ou tarde, pode ser reclamado pela Mãe d’Água.
Uma das maiores habilidades de Amado, a propósito, é o seu imensurável talento em criar personagens com tal complexidade que fica difícil ao leitor identificar qual deles é o mais ou menos importante para a história. Exemplos não faltam para se observar: Rodolfo, malandro e mandrião; Rufino, cantor e tatuador; Rosa Palmeirão, icônica mulher solo, viajante e primeira amásia de Guma; A fogosa Esmeralda, companheira de Rufino; Seu tio Francisco e suas redes remendadas cheias de estórias e lembranças, o contrabandista árabe Toufick e tantos, tantos outros como as estrelas do céu soteropolitano.
Desfrutar das lendas populares interpretadas por um mestre das letras é a maior recompensa de quem mergulha junto a Guma nas marolas intensas da vida, tão homenageada em suas lindas amarguras e júbilos, em sua luta diária para viver como barqueiro. Cada parágrafo parece plantar a cândida condescendência humana na mente de um afortunado viajante literário. A obra, assim, torna-se um emocionante causo sobre viver e morrer à beira de uma praia baiana, uma trágica doçura. Imperdível para quem gosta. E quem não haveria de gostar?
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