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Memória de elefante - Dias de agonia para quem sabe demais

  • Foto do escritor: Júlio Moredo
    Júlio Moredo
  • 10 de nov. de 2020
  • 5 min de leitura

Romance autobiográfico mas dramatizado do próprio autor, um psiquiatra que serviu na terrível Guerra do Ultramar portuguesa, carregou dela seus traumas e dores e agora vive suas próprias, com a separação da esposa amada família, tendo que se adaptar a uma nova realidade de solidão e melancolia

Se há um livro com o qual tive contato direto da leitura analítica que faz jus a uma dialógica reta entre título e conteúdo, este é Memórias de Elefante, romance inaugural da larga carreira icônica do psiquiatra português Antônio Lobo Antunes. Toda ela se passa em apenas dois dias da fase mais penosa do próprio autor, o “Médico”, protagonista e narrador da história.


A obra começa na sua desgastante rotina a cuidar de doentes mentais num sanatório de Lisboa ainda assombrado pelas horrorosas lembranças da Guerra do Ultramar, em Angola, colônia portuguesa de então, e atormentado pelos traumas da infância e do presente, marcado por um abalo que expos seu egoísmo e fraqueza emocional. O psiquiatra, então, se apresenta como alguém triste com o resultado de suas ações e crueldade do destino. O modo cru de enredar todo este cenário faz com que o leitor navegue junto aos desabafos de Antunes, ditos muitas vezes em metáforas e referências a pacientes, escritores, músicos e filósofos para ilustrar seu eu em crise. Por isso, é um livro para se ler aculturado e com a imaginação em dia.


Mesmo assim, há qualquer sensação de se estar num divã discutindo seu próprio ser com um especialista em flagelos da mente, alternando também posição com a poltrona do doutor quando este desafoga seus mais íntimos e loucos fracassos. Filho rico de pai neurologista e mãe julgadora, ele é tomado de um ódio terrível e impotente ante a perversidade e arrogância de sua profissão, que cataloga rebeldia e mesmo genialidade como loucura para sanar indivíduos muitas vezes apenas livres de prisões morais e sociais. O descrédito de sua mãe em sua maturidade jogam (e muito) a favor de seu partido pró-desvairios.

Toda essa construção é chancelada através de uma prosa seco que não deixa de dar certo humor às passagens mais dramáticas e tristes do seu lidar com desvairados e malucos.


Separado há cinco meses, foi ele viver próximo às margens atlânticas do Estoril, zona nobre lisboeta, e vê por sua janelas as ondas marinhas o instarem ao eterno mergulho, que ele anda preferindo realizar nas bebidas alcóolicas, suas atuais e únicas companheiras pessoais além da falta das filhas e do remorso, carência e autoflagelo por abandonar a amada esposa.


“Uma garrafa de aguardente iluminava a cozinha vazia (...) De roupa espalhada no soalho o médico aprendia que a solidão possui o gosto azedo do álcool sem amigos, bebido pelo gargalo, encostado ao zinco dos lava-loiças. E acabava por concluir, ao repor a rolha com uma palmada, assemelhar-se ao camelo recheando sua bossa antes da travessia de uma longa paisagem de dunas, que teria preferido nunca conhecer”, (A só no divórcio, primeiro capítulo)


“Era em momentos desses, quando a vida se torna obsoleta e frágil (...) que a memória das filhas lhe tornava à memória na insistência de um estribilho de que não lograva desembaraçar (...) e lhe produzia o tumulto intestinal de guinadas de tripas em que a saudade encontra o escape esquisito de uma mensagem de gases” (a separação dos entes, a desesperante dor de alma que inflige os órgãos digestivos, primeiro capítulo)


Assim Antônio vai dialogando com o leitor e consigo próprio por intermédio de seu eu lírico posto nas linhas inicias em que abundam análises sobre as frivolidades da vida construída, desde o casamento institucional ao amor juvenil e despreocupado. Talvez aí esteja o segredo de, apesar de extremamente complexo e existencialista, Antunes não desagradar à primeira lida um acompanhante desavisado, pois nos remete a ritos universais de nós mesmos. Seus comparativos e relatos do comportamento dos internos do hospital assim também o atestam: a loucura e a sabedoria são irmãs siamesas, e as vicissitudes e dores do envelhecer como um agoniado ‘normal’ assim demonstram.


A moral, sonhos, desejos, manias e pecados mais desesperados de alguém que a solo se descobriu transparecem com força a partir dos capítulos iniciais. As cansativas interações com sua secretária-enfermeira, Deolinda, o chamam como a um despertador à realidade tresloucada do hospital mental em que toma gestão. Ela, apesar disso, sabe de suas recentes mazelas.


“Quando é que me fodi? Inquiriu o médico ao garoto que pouco a pouco se dissolvia com a sua gaguez e o seu espelho para ceder lugar a um adolescente tímido, de dedos manchados de tinta, encostado a uma esquina propícia a fim de assistir à passagem indiferente e risonha das raparigas do liceu cujos soquetes o abalavam de desejos confusos mas veementes afogados em chás de limão solitários na pastelaria vizinha, ruminando num caderno de sonetos à Bocage policiados pela censura estrita do catecismo de bons costumes das tias. (Devaneio no escritório, segundo capítulo)


Aos poucos a prosa erudita de Lobo nos destrincha o que mais atormenta o Psiquiatra (propositalmente sem nome): O rompimento prematuro com seu eterno e único amor, a tristeza do desamparo a que deixou as filhas e, até mais do que estes dois aspectos, o horror da natureza mortífera e sanguinária dos homens que lhe foi introduzida na Guerra do Ultramar, expondo menos sua posição política ante o salazarismo e mais a sua condição de zelador da vida observando-a sendo tratada com desdém cruel e degenerado.


“Que sabe este tipo de África (...) que sabe este caramelo da guerra onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros (...) que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão(...) das raparigas grávidas espancadas pela PIDE (...) do medo, da raiva, da solidão, do desespero? (...) Salazar, virgem sem útero, filho de dois cónegos (...) O que sei de África? A imagem da mulher à espera dele entre as mangueiras (...) o crepúsculo apareceu-lhe numa guinada de saudade violentamente física como uma víscera que explode. Amo-te tanto que te não sei amar (...) (Diálogo com o policial, terceiro capítulo)


Sua relação com os pacientes, antigos e recém-chegados ao purgatório em que se instalou sua profissão, servem para aumentar a depressão e dores arrependidas dos defeitos que à tona vêm ao Médico divorciado. O reconhecimento de seus erros é espelhado nas faces dos mais problemáticos matosquelas que por lá arribam almas. A ele nada mais lhe cabe do que enfrentar suas piores manias egoístas e reconstruir o que ele mesmo fez ruir junto aos pilares de sua vida: a idolatrada mulher e as miúdas, suas filhas. Nessa sessão de terapia privada-pública em que se destrincha o limite entre sanidade e loucura, o Psiquiatra possui fugas no álcool, nos passeios e desventuras vadias por Lisboa, nas sessões coletivas de análise e na escrita, sua paixão sempre ocultada e reprimida: “Dirigiu-se para o parque de estacionamento junto ao rio, onde, desde sempre, passeara sua solidão, porque pertencia à classe de pessoas que só sabem sofrer acima de seus meios. (Capítulo 7, página 86)

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