O Conde de Chanteleine – Júlio Verne
- Júlio Moredo
- 3 de mai. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 15 de mai. de 2022
Novo x antigo, honra x traição. Sangue, suor e muitas lágrimas de um povo oprimido trocando o opressor na Revolução que moldou o Ocidente: a Francesa

Polêmico desde sua essência e contexto histórico, redigido à época da Primavera dos Povos, do segundo dezoito Brumário e da Terceira República Francesa, O Conde de Chanteleine, romance histórico mais marcante do francês Júlio Verne, um reconhecido autor de ficção científica, demorou séculos para ganhar a possibilidade de ser editado em livro integral.
Isto porque estava envolto em censura e polêmicas devido ao seu conteúdo morfológico, narrativo, dramático e sintático das crueldades inumanas e sem limites perpetradas pelos jacobinos à época da terrível Fase do Terror da Revolução Francesa, entre 1790 a 1793, onde, na tradição ocidental, “cabeças e nobres voavam e morriam como moscas”.
Justamente pelo teor oposicionista às práticas traumáticas destes anos, Verne, católico de formação, fora aconselhado por seu editor, um protestante calvinista, a não ir atrás de editoras a fim de publicar a trama na íntegra, ficando ela restrita a doses homeopáticas em periódicos girondinos parisienses até fins do século XX, mais precisamente em 1994, quando ganhou sua primeira compilação em livro.
Tudo isso ajudou a que a trama, não somente por sua qualidade literária e objetiva para compreendermos um tempo, ganhasse a curiosidade e admiração dos novos leitores em formação num momento tão tenso e intolerante como os nossos para com os ideais democráticos tão conclamados, suados, lutados e sublimados às custas de milhares de cadáveres franceses que, por terem se negado a abraçar padres republicanos e constitucionais, abdicados do Papa, viram seus direitos, patrimônios e vidas serem jogados à guilhotina.
Neste contexto áspero para as raízes da contemporaneidade, ápice da principal Revolução Burguesa (a Independência dos Estados Unidos vem logo em seguida no quesito), é que Júlio nos apresenta, em marcha lenta, desolada, faminta, esfarrapada, ultrajada e exausta, o protagonista e o principal coadjuvante: o Conde de Chanteleine, que dá nome ao livro, e seu irmão de leite e fiel servo e amigo Kernan.
“Seu olhar devorava a costa. Ele contava as horas, os minutos, sem imaginar o perigo que uma tempestade o faria correr. Todo o horror dessa guerra civil, na qual as crueldades foram terríveis dos dois lados, voltava-lhe à memória. Jamais sua esposa e filha tinham-lhe parecido correr tantos perigos! Ele as imaginava atacadas, aprisionadas, ou talvez em fug, aguardando em alguns rochedos do rio um socorro inesperado, e, às vezes, imaginava que algum chamado chegava a seus ouvidos.” (A volta do Conde pelo rio Loire, Cap. III, pg. 91)
Ambos são nascidos e criados na Bretanha, região erma do noroeste da França, e nutrem uma secular devoção cristã-católica e, como heróis do medievo, cultuam ainda a honra, a palavra e a luta de espada em punho e cavalo a rédeas contra injustiças e abusos de poderosos, o que estava justamente ocorrendo na parte mais céltica do território francês.
A dupla, quase mestre e aprendiz de Dom Quixote e Sancho Pança, só que com inimigos reais e extremamente cruéis, lideram boa parte da resistência católica dos “brancos”, rebeldes isolados geograficamente que se opõem ao Terror jacobino de Paris e Provence num combate desesperado contra os “azuis”, mais numerosos, bem armados e apoiados por exércitos regulares da Força revolucionária, a despeito de todos os problemas externos que a nascente república sofria dos reinos vizinhos da Europa.
Num cenário de fim de guerra, a da Vendeia, onde os monarquistas estão derrotados mas não alquebrados, vão então o valente e probo Conde junto a seu valoroso e honesto escudeiro conduzindo a marcha dos que restaram da revolta que aspirou tomar Nantes, maior cidade a sul de Brest e Quimper, reduto onde o nobre possui seu castelo e herdade feudal.
Por intermédio de notícias terríveis advindas das duas praças, a dois dias e meio de marcha a pé ou por mar, Chanteleine e Kernan abandonam na maior segurança possível seus pobres homens para rumar freneticamente rumo a nordeste, ao cabo do Mar Celta e ao reduto de sua família, presa entre o martelo e a bigorna na ausência de seu senhor e protetor.
Descritos muito bem por Verne como legalistas acima de tudo, os Chanteleine dominam essa plaga desde os primeiros reinos merovíngios, nunca se envolvendo em guerras e raramente indo prestar juramentos ou pedir favores à corte franca, seja de qual dinastia fosse. Em contrapartida, eram queridos por seus vassalos e extremamente louvados como justos protetores do sistema feudal ainda vigente em áreas rurais francesas no século XVIII.
A mensagem que fica ao leitor é justamente essa, a da brusquidão da mudança violenta que os revolucionários causaram sem quaisquer distinções de inocentes ou culpados e razoáveis atos de preservação de direitos humanos. Os partidários de figuras como Marat, Danton, Kléber e Robespierre simplesmente passavam em cima de corpos de quem quer que se insurgisse ou questionasse de modo ponderado a nova ordem do país, a nascente democracia moderna.
O que nos deixa intrigados não é só a habilidade de sumarização que possui Verne e que o consagrou como grande escritor de best-sellers aventureiros como Vinte mil léguas submarinas ou A volta ao mundo em oitenta dias , mas também a riqueza existencial à qual ele logra posicionar cada personagem, dando ao leitor claro contraste de aspirações de mocinhos e vilão (este último, de nome Karval, é um sanguinário executor de sentenças de Quimper, arrivista de carreira e aproveitador de favores junto aos revolucionários da capital.
“Karval era um homem de estatura mediana e portador de uma dessas más fisionomias moldadas pouco a pouco pelo ódio, pela baixeza e pela maldade. Cada novo vício nela se impregnava e deixava seus estigmas. Ele não carecia de inteligência, mas, ao vê-lo, sentia-se que devia ser um covarde. Como muitos heróis da Revolução, foi sanguinário por medo, mas por medo também permaneceu inflexível, nada o comovia.” (Sobre Karval, Cap. V, pg. 113)
Algumas das vítimas deste tenebroso e também covarde homem acabam por ser a esposa e filha ainda criança do Conde, Marie de Chanteleine. Desesperado pela perda do esteio de todo ser humano, a família, ele se vê na perspectiva de balancear vingança e luto eterno pela honra das tombadas numa guerra que não provocaram.
A caça ao assassino e a seus comparsas levará Chanteleine, Kernan e, posteriormente, o probo Cavaleiro de Trégolan, aos confins de uma França rural e carente de burgueses ou nobres que a olhassem como um ajuntamento de pessoas à procura de dignidade e, claro, liberdade, igualdade e fraternidade tão bradadas pelo levante de 1789 que moldou nossas bases jurídicas, sociais, políticas e econômicas à custa de muito sangue de pessoas comuns acostumadas a um Antigo Regime presente no âmago de um país agrário, religioso.
A mensagem que fica de Verne, para além da enriquecedora e muito agradável viagem ao tempo de virada entre a Idade Moderna e a nossa, é justamente a de tolerância e humanidade aos contrários de movimentos que giraram as rodas da História. Assim, se há uma coisa que o autor logra extrair de seu leitor nesta jornada é sua total complacência para com os injustiçados retratados em narração onisciente e apaixonante, sempre guiados, de alguma maneira, pela Divina Providência.
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