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O Mundo Perdido – Arthur Conan Doyle

  • Foto do escritor: Júlio Moredo
    Júlio Moredo
  • 12 de jul. de 2021
  • 7 min de leitura

Atualizado: 4 de ago. de 2021

Aventura pura combinada ao bom humor de um lorde do mistério e ficção

Foi em uma viagem expedicionária pelo norte sul-americano, entre o que chamamos hoje de Roraima e Venezuela, que o escritor escocês Conan Doyle teve a inspiração final para redigir seu mais famoso romance depois de Sherlock Holmes, O Mundo Perdido. Lá, ao visitar o mítico monte que dá nome ao estado brasileiro, Doyle também forjou seu carismático protagonista, quase chegando perto do imortal detetive. Falo do intrépido e aventureiro Edward Malone, periodista irlandês e personagem principal deste O Mundo Perdido.


Repórter de uma Inglaterra neocolonialista do início do século XX pronto para ganhar o coração de sua musa, a linda morena Gladys, perfeita mulher para inspirar e motivar alguém a realizar as mais distintas proezas no rumo da posteridade para conseguir seu coração. É ele quem nos contará todo o desenrolar da história, em primeira pessoa.


O cenário inicial deste prazenteiro romance é este mesmo: descrições rápidas porém ricas de personagens complexos da aristocracia e imprensa britânicas com todas as suas vicissitudes. Gladys, num diálogo inicial, praticamente intima Malone, um de seus admiradores, a realizar algum prodígio em sua área, a reportagem, para ter chances de conquistar uma vida ao seu lado. O repórter aceita o desafio e se lança à caça de alguma pauta que beirasse o irreal para cobri-la como um correspondente de guerra.


Cheio de referências de ícones da ciência e das artes do século XVIII, a narrativa prende o leitor pela fluências dos diálogos e cadência tranquila de seus acontecimentos. E é precisamente assim que Edward, o protagonista, interpela seu editor, o escocês McArdle, a dar-lhe uma cobertura digna de riscos e proezas, bem como de estouro de leitores e vendas de jornais, claro.


O ruivo e bonachão jornalista sugere que o rapaz procure o professor George Edward Challenger, um excêntrico biólogo e zoólogo que jura ter encontrado o Mundo Perdido repleto de espécies extintas, como dinossauros e antigos mamíferos, além de muita, muita coisa mais que põe Doyle num paralelo a Verne nesta expedição ao coração da América do Sul. Este acadêmico planeja uma nova empreitada para provar sua tese anti-evolucionista e necessita, além de fundos, de alguém da imprensa para contar a coisa toda ao grande público – era a oportunidade que o jovem tanto ansiava no rumo da glória e do amor de sua Gladys.


Com linguagem quase informal, despojada mesmo, a trama vai se desenrolando sem que o leitor sequer se aperceba de fechar as páginas por certo tempo, tamanho dinamismo nas buscas de Ned Malone pelo seu homem, que se mostra cada vez mais assustador e estranho aos seus olhos quando se depara com gente que conheceu e reprovou o comportamento do professor Challenger. Um aspecto realístico do livro é ele também abordar o nascimento de grandes templos do jornalismo durante a procura do repórter pelo acadêmico. Nomes de veículos como Nature, The Telegraph e Reuters são citados durante a apuração de sua fonte e pauta para a aventura.


“Estou distante demais para falar sobre o escândalo, mas ainda em conversas científicas ouvi alguma coisa a respeito desse Challenger, pois ele é um desses homens que ninguém pode ignorar. Ele é tão inteligente quanto dizem, uma bateria carregada de energia e vitalidade, mas um maníaco, destrambelhado e sem escrúpulos. Ele teve a audácia de falsificar algumas fotografias sobre essa coisa da América do Sul.” (Bacteriologista da Nature descrevendo o professor, capítulo 2)


Dotado de acessível humor e inteligente ironia, o texto de Doyle nos apresenta finalmente o terrível naturalista Challenger, o homem que contesta e confronta tanto Darwin como Weismann. Malone escreve a ele apresentando-se falsamente como um admirador e interessado em suas teses para conseguir um encontro, o que é desaconselhado por seu colega da Nature, que intermediou as correspondências.


Nosso ousado jornalista pôde, então, se encaminhar à rica mansão do erudito e, após ser indicado por seu antigo motorista (fazendo as vezes de mordomo pela demissão sumária dos antigos) e da galharda esposa do douto, adentrou no escritório do homem com todos os dedos e diplomacias possíveis àquela situação previamente alertada como perigosa. Não deu outra: mais uma genial mescla de humor com complexidade na apresentação deste guia de todo o enredo, tão ameaçador quanto grotesco e intratável, o suficiente para o leitor cair na risada.


Ele se colocou de pé com uma raiva furiosa nos olhos. Mesmo nesse momento de tensão, encontrei tempo para me surpreender com a descoberta de que ele era um homem bastante baixo, com a cabeça não muito mais alta do que o meu ombro. Um verdadeiro Hércules atrofiado, cuja tremenda vitalidade havia se acumulado no volume, na largura e no cérebro. (descrição de Challenger assim que se levanta, colérico com a farsa retórica de Malone)


Logo depois desta divertida entrevista, Malone caiu em si sobre realmente ser impossível, como diz o texto de Arthur, lidar com o terrível intelectual, chegando mesmo, como outros, às vias de fato e só recepcionado de volta à casa do sujeito pelo recobro da calma junto a um guarda londrino, que ofereceu a prestação de queixa contra o professor e foi refutado pelo jornalista, que queria descobrir os segredos mais fundos do professor e seu interesse na Amazônia. A partir daí a história realmente desemboca na aventura louca de sua vida.


Challenger então apresenta a Malone um diário de vagem de um norte-americano que ele encontrara morto em uma taba de índios no meio da Amazônia e, para a surpresa e estupefação dele, havia desenhos de um dinossauro assustador em um deles. A suspeita recaiu de que o poético ianque era apenas um lunático, o que foi refutado pelo professo.


É aí que a trama realmente engrena no ruma da viagem a ser feita por ambos, já que o acadêmico ficou intrigado e persuadiu os índios a o guiarem no rumo do local amaldiçoado de onde diziam que o norte-americano tinha vindo e desenhado a criatura, lar, segundo eles, do nosso conhecido demônio das matas, o Curupira. Challenger tirou uma foto do local mas ela desbotou numa viragem do barco no caminho de volta pelo rio, e esta era a razão para ele estar sendo ridicularizado pelos demais estudiosos, mesmo tendo descoberto e fotografado um pterodátilo na base do grande platô que cobre o final da trilha, onde os animais jurássicos habitam.


Quase ninguém na literatura de ficção consegue mesclar com tamanha maestria bom-humor, erudição e suspense como Doyle. Seus personagens são muito bem moldados e detalhados em reações e aspectos físicos. Quando achamos que será o professor Challenger que levará o narrador Malone até as escarpas do misterioso platô, eis que, durante um evento acadêmico muito engraçado, ele aponta para o esguio, cético e mal-humorado professor Summerlee, biólogo especialista em dinossauros, o aventureiro e desportista John Rxotn, nobre de família e peregrino de vida, caçador de feras e de homens, e o próprio Malone, que se voluntaria para testar sua débil coragem irlandesa para lograr o coração de Gladys. O trio parte de Southampton com recomendações de Challenger e um envelope que ele diz estritamente para só abrirem em Manaus, após entrarem no Amazonas por Belém. Ali o nosso repórter será realmente um contador em prosa e cartas das aventuras fantásticas que os esperam no fascinante continente sul-americano.


A América do Sul é um lugar que amo e acho que se você for direto da Região de Darién até a Terra do Fogo, estará no maior, mais rico e maravilhoso pedaço de terra do planeta. As pessoas ainda não sabem disso e nem percebem no que podem se tornar. Eu estive lá, para cima e para baixo, de ponta a ponta, em duas temporadas secas por aquelas regiões (...) Bem, quando eu estava lá, ouvi alguns rumores desse mesmo tipo: tradições de índios e coisas assim – mas com alguma coisa por trás delas, sem dúvida. Quanto mais você conhece aquela região, meu caro, mais você entende que qualquer coisa é possível, tudo é possível! (...) Tudo é um mistério. Agora, aqui embaixo, no Mato Grosso, até aqui em cima, nesse canto onde três países se encontram, nada me surpreenderia. (...) Existem quarenta e cinco quilômetros de caminhos de água através de uma floresta que está muito perto de ter o tamanho da Europa. Você e eu poderíamos estar tão distantes quanto a Escócia fica de Constantinopla e, ainda assim, cada um de nós ainda estaria na mesma grande floresta brasileira.” (Lorde Roxton explanando o mapa do continente a Malone, capítulo IV)


Sendo o romance, grosso modo, uma espécie de Coração das Trevas com humor e muito melhor encadeado, especialmente no que concerne aos personagens, Conan Doyle nos mostra realmente que o interior do Brasil e da América do Sul em geral de fato sempre foi uma terra de ninguém, com traficantes de pessoas e látex comandados por vis caboclos na tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia. Foi precisamente lá que Lorde Roxton logrou fama heroica e ressentimento por libertar indígenas escravizados e matar o traficante-mor da zona.


E é utilizando suas habilidades e experiências na região que o trio britânico contrata, ainda no Pará, o negro Zambo, o índio Mojo e os jagunços mestiços José e Gomez para reforçarem como guias e trabalhadores braçais a comitiva que partiria de Manaus no rumo daquela imensidão verde. Surpreendidos em Manaus pelo próprio Challenger, que saiu em outro navio pouco depois deles para pegá-los de surpresa, já no Brasil, segue então o grupo no rumo noroeste, muito provavelmente para a região do pico da neblina, a despeito de a inspiração para a obra ter vindo do Monte Roraima.


“Nós vamos matar vocês se pudermos” (tambores na subida do rio pareciam dizer isso)


É a partir de lá que a comitiva irá comprovar ou não se o que o acadêmico alegava era verdade. Perigos iminentes no desconhecido nos são desnudados com paixão e detalhes que só alguém que amou muito a Amazônia como Doyle poderia fazer. A subida de afluentes do Negro acima é particularmente horripilante pelas ameaças indígenas. Um livro-deleite para quem gosta de aventura, mistério, suspense, humor e, principalmente, entender a fissura que a grande floresta sul-americana causa até hoje na humanidade.

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