São Bernardo – Graciliano Ramos
- Júlio Moredo
- 27 de dez. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 6 de jan. de 2022

Apresentando de modo impressionante um Nordeste sertanejo totalmente vivaz aos sentidos do leitor, já logo nos primeiros parágrafos, páginas e capítulos, o alagoano Graciliano Ramos escreve em primeira pessoa este romance quase tão célebre quanto o seu mítico Vidas Secas, também ele escrito na década de 30, através da narração em primeira pessoa de Paulo Honório, o protagonista da trama e senhor do enredo, já que opina sem contraponto sobre as pessoas que o marcaram, para o bem e para o mal, na sua sofrida caminhada no rumo do poder político e econômico da localidade de Viçosa, situada no meio semiárido de Alagoas.
Honório começa, sem qualquer tipo de introdução que abrange seu discurso direto e visceral, cheio de gírias locais, todas as mazelas pelas quais atravessou desde a sua paupérrima infância, suas primeiras travessuras e furtos, o primeiro atrair sexual, para Germana, que lhe gerou uma briga terrível com João Fagundes pela posse da virgindade da ainda miúda menina, o que lhe rendeu a prisão por anos que o encheram de ganas e saudades da vila em que crescera ainda sem ter conhecido os prazeres do mundo, talvez com a exceção dos doces de dona Margarida, senhora das poucas que o ajudou no período. Dentro de celas foi educado e doutrinado na resiliência sertaneja por Joaquim carpinteiro, muito mais velho e criminal das antigas da zona.
Retornado à sua cidade, Paulo trabalha por alguns anos para Salustiano Padilha, morto pobre por gastar tudo a investir num filho promiscuo e mandrião que herda a propriedade principal do pai, a fazenda de São Bernardo, totalmente arruinada e mal cuidada. Rápido em economias e bom em alavancar capitais, Honório finge ser o benemérito do primogênito desorientado de seu antigo chefe, emprestando-lhe dinheiros pessimamente gastos a juros pequenos, que ele guarda em cadernetas centavo por centavo para, depois, forçar a aquisição da fazenda de Luís Padilha, o filho ingrato de seu antigo chefe.
A transação acaba ocorrendo e demonstra já a malícia, ambição e persuasão que Paulo emprega num ser mais fraco, implacavelmente mutilado em argumentos, jogadas, truques e manobras que fazem de Paulo Padilha, seu credor, alguém totalmente submisso à sua vontade mesmo sendo ele alguém com alguma influência pública no lugarejo por meio de seu pasquim municipal.
No final as contas, Honório cede um sobradinho na área urbana de Viçosa a troco da fazenda e mais alguns contos de réis apenas para dobrar o vendedor a um preço muito menor do que a propriedade rural, quase um latifúndio, valia, e é a partir daí que a narrativa de um homem que se faz poderoso, em todos os sentidos, realmente se inicia e mostra a ascensão de alguém crescido no agreste e moldado para a tirania numa modernidade que ainda claudicava a chegar pelos rincões interioranos brasileiros.
Desta forma, coma a aquisição da propriedade de seus sonhos de poder, uma nova aurora surge na vida do protagonista através de seus esforços para fazer prosperar cada palmo de terra de seu latifúndio, plantando mamona e algodão, murando açudes com o seu capataz, Casimiro, e, claro, entrando em quizilas e entreveros com seu vizinho, Mendonça, político já consolidado na região e notório dissimulador de cercas e limites de sua área rural. Honório não se intimida, faz o jogo da boa vizinhança enquanto manda desmontarem cada arame dentro de sua área, além de entrar, claro, para a política, onde vemos escancarado pelo texto rápido mas jocoso e cheio de gírias de Graciliano o quanto a zona era influenciada por oligarcas, coronéis e votos de cabresto de políticos com poder até na capital, Maceió.
É nessas circunstâncias que o próprio Honório nos mostra que Mendonça morre repentinamente dentro da sua casa-grande, dando claramente a impressão que foi Paulo o autor da tramoia: “No outro dia, sábado, matei o carneiro dos eleitores. Domingo à tarde, de volta da eleição, Mendonça recebeu um tiro na costela mindinha e bateu as botas ali mesmo na estrada, perto de Bom-Sucesso. No lugar hoje uma cruz com um braço a menos (...) Na hora do crime eu estava na cidade, conversando com o vigário a respeito da igreja que pretendia levantar em São Bernardo (...) Que horror, exclamou padre Silvestre quando chegou a notícia. Ele tinha inimigos? Se tinha! Ora se tinha! Inimigo como carrapato. Vamos ao resto, padre Silvestre. Quanto custa um sino? (Capítulo VI)
A prosa de Ramos vai nos levando a perceber que o narrador, Paulo Honório, de fato está relatando suas memórias a fim de pôr um bom termo em sua existência, livrando-se dos pecados terríveis cometidos para atingir o auge econômico e poderio político.
Neste cenário de fácil enamorar ao prestígio e ao sucesso, Honório vira um elitista oligarca com todos os pré-requisitos tão conhecidos de brasileiros de norte a sul: realiza obras de cunho social para obter apoio do governo de Maceió, manipula membros da pequena imprensa e comércio local, como o próprio Padilha, cada vez mais consumido pelo fracasso pessoal, e ainda finge ter zelo pelas filhas de Mendonça, antigo inimigo e morto do nada, o que faz dele de fato a maior força daquelas plagas junto aos seus capatazes e a João Nogueira, seu corrupto advogado, Casimiro Lopes, capataz e jagunço-mor, Seu Ribeiro, o contador de Paulo, o idealista Padre Silvestre e Azevedo Gondim, o favorito lambe-botas da fazenda, não sem muitas vezes ir contra as opiniões truculentas e quase toscas de Honório com relação a conhecimento, saber e erudição, para ele tudo coisa vã e fútil.
Aos poucos se vê que o protagonista é incapaz de sentir ternura ou mesmo um amor verdadeiro. Ironicamente, porém, seus poucos afetos se direcionam a uma menina, dezoito anos mais nova, de nome Madalena, uma encantadora professora e sobrinha da já amiga de conversas dona Glória. As bodas são marcadas e feitas na própria São Bernardo, não antes de já anunciar uma ruptura litigiosa devido à independência e cultura moral e geral da esposa, que vão contra as premissas mais arraigadas e viciosas do marido.
"Conheci que Madalena era boa em demasia. Mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. (Reflexões em solitude de Honório, capítulo 19)"
Apartado de um senso maior de reflexão que não fosse pela labuta, posse e virilidade, vai Honório transformando aos poucos num inferno a vida de sua jovem esposa pelos ciúmes de todos e de tudo e uma clara raiva de sua instruída caridade.
O leitor, assim, começa a entender que aquela história de vida está sendo contada por um velho ora solitário, frio e, sem o perceber, tão reacionário e avesso às justiças sociais que ele mesmo se privou em jovem quanto os velhos coronéis e caudilhos do sertão brasileiro, ficando assim o romance como um gostoso livro de memórias para se conhecer melhor a alma do brasileiro interiorano (especialmente o nordestino) e também a nossa índole, um pouco universal, de repetir o passado tanto em forma de farsa como de tragédia, como bem nos ensinou Karl Marx, guia político do socialista Graciliano Ramos.
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